Lei de Programação Militar<br>deve ser levada a sério (*)

António Filipe

O Go­verno apre­sentou fi­nal­mente uma Pro­posta de Lei de re­visão da Lei de Pro­gra­mação Mi­litar (LPM). A LPM de­veria ter sido re­vista em 2009. Não foi. A res­pon­sa­bi­li­dade foi do Go­verno an­te­rior. Não tendo sido re­vista em 2009, de­veria ter sido re­vista em 2010. Não foi. O ac­tual Go­verno de­veria ter pro­mo­vido a re­visão da LPM em 2012. Não o fez. Em 2014, também não o fez.

A LPM, que é uma lei de valor re­for­çado, e que nos seus pró­prios termos de­veria ser re­vista nos anos pares, vai ser re­vista num ano ímpar, e com seis anos de atraso.

Mas será que a LPM de 2006 nunca foi re­vista? É evi­dente que foi.

Nunca foi re­vista nos termos da Cons­ti­tuição e da lei, mas foi sempre re­vista à re­velia das suas pró­prias dis­po­si­ções, através de ca­ti­va­ções nos or­ça­mentos do Es­tado, através de de­ci­sões avulsas to­madas pelo go­verno, que exe­cuta muito, exe­cuta pouco ou não exe­cuta nada, que eli­mina uns pro­gramas e cria ou­tros, que faz o que muito bem en­tende, como se pura e sim­ples­mente não exis­tisse uma Lei de Pro­gra­mação Mi­litar.

Porém, este pro­cesso de re­visão da LPM nasce torto. Muito torto.

O Go­verno apre­senta à As­sem­bleia da Re­pú­blica uma Pro­posta de Lei que é pouco mais do que um papel em branco.

Pode ler-se no ar­tigo 14.º da Pro­posta de Lei que a pro­posta de lei de re­visão da LPM deve conter fi­chas de ca­pa­ci­dades e pro­jectos com a des­crição e jus­ti­fi­cação ade­quadas, bem como o res­pec­tivo pla­ne­a­mento de­ta­lhado.

E na ver­dade, sempre que a LPM foi re­vista nos termos da lei, assim foi. Em 2006 vo­támos na es­pe­ci­a­li­dade em ple­nário todos e cada um dos pro­gramas.

Pois bem: as fi­chas de pro­jectos a sub­meter a esta As­sem­bleia che­garam ontem [21.1.15] aos grupos par­la­men­tares com a chan­cela de «con­fi­den­cial».

Nem se acre­dita. Os pro­gramas da LPM não podem ser con­fi­den­ciais.

As fi­chas de ca­pa­ci­dades e pro­jectos com a des­crição e jus­ti­fi­cação ade­quadas, bem como o res­pec­tivo pla­ne­a­mento de­ta­lhado devem constar da Pro­posta de Lei, e os pro­jectos devem ser vo­tados na es­pe­ci­a­li­dade um por um, como sempre foram.

O que o Go­verno faz constar da pro­posta de lei é uma enu­me­ração de ca­pa­ci­dades sem cor­res­pon­dência em pro­gramas con­cretos. Nada adi­anta a esta As­sem­bleia apre­ciar uma enu­me­ração de ca­pa­ci­dades. O que esta As­sem­bleia tem o di­reito de de­cidir e os por­tu­gueses tem o di­reito de saber é se o Go­verno se propõe re­novar os aviões C-130 ou ad­quirir KC 390 e quais os custos dessas op­ções. A As­sem­bleia tem o di­reito de de­cidir e os por­tu­gueses têm o di­reito de saber, que na­vios vão ser ad­qui­ridos para a Ma­rinha, se são NPO, se são na­vios pa­trulha di­na­mar­queses, se é um Po­li­va­lente Lo­gís­tico, ou se são mais sub­ma­rinos.

Questão de trans­pa­rência 

Os pro­gramas e pro­jectos da Lei de Pro­gra­mação Mi­litar não podem ser con­fi­den­ciais. Es­tamos a falar de mi­lhares de mi­lhões de euros que os por­tu­gueses pagam com os seus im­postos. Es­tamos a falar de op­ções es­tra­té­gicas para o equi­pa­mento das Forças Ar­madas Por­tu­guesas. Es­tamos a falar da re­visão de uma lei cuja apli­cação foi en­volta em pro­cessos ne­bu­losos, com con­sequên­cias gra­vís­simas para a cre­di­bi­li­dade do Es­tado e para o bolso dos por­tu­gueses.

Foi no âm­bito da LPM que foram feitos os cé­le­bres con­tratos de con­tra­par­tidas nunca cum­pridas, no valor de mi­lhares de mi­lhões de euros; que foram feitos con­tratos de aqui­sição de he­li­cóp­teros sem cuidar de ga­rantir a sua ma­nu­tenção; que foram feitos con­tratos de aqui­sição de blin­dados de rodas que fi­caram por en­tregar; que foram ga­ran­tidos avul­tados pro­ventos à ESCOM, à fa­mília Es­pí­rito Santo, e a per­so­na­gens mis­tério.

A Lei de Pro­gra­mação Mi­litar de­veria ser le­vada muito a sério. Es­tamos a falar de um grande vo­lume de re­cursos pú­blicos cuja uti­li­zação tem de ser muito bem en­ten­dida pelos por­tu­gueses. Na de­fi­nição e na exe­cução dos in­ves­ti­mentos des­ti­nados ao equi­pa­mento das Forças Ar­madas tem de haver uma de­fi­nição muito cri­te­riosa de pri­o­ri­dades, tem de haver rigor, tem de haver trans­pa­rência. Os por­tu­gueses que pagam estes in­ves­ti­mentos com os seus sa­cri­fí­cios têm de en­tender a sua im­por­tância e saber exa­ta­mente o que estão a pagar, e não podem aceitar que a As­sem­bleia da Re­pú­blica as­sine che­ques em branco de mi­lhares de mi­lhões de euros aos go­vernos, para que estes façam e des­façam os con­tratos que en­ten­derem ao abrigo de cláu­sulas si­gi­losas, ao sabor de cri­té­rios mal ex­pli­cados e ao ser­viço de in­te­resses es­tra­nhos à boa gestão dos re­cursos pú­blicos.

Esta Pro­posta de Lei de re­visão da LPM, para além do seu ca­ráter ina­cei­ta­vel­mente vago, contém a sua pró­pria ne­gação.

Senão ve­jamos: a LPM fixa as ca­pa­ci­dades e as res­pec­tivas do­ta­ções or­ça­men­tais e de­ter­mina que as leis que aprovam os or­ça­mentos do Es­tado con­tem­plem anu­al­mente as do­ta­ções ne­ces­sá­rias para a sua exe­cução. Mas de­pois per­mite que o Go­verno pro­ceda a al­te­ra­ções or­ça­men­tais entre ca­pí­tulos, trans­fira do­ta­ções entre as di­versas ca­pa­ci­dades e pro­jectos, crie novas ca­pa­ci­dades e pro­jectos. Ou seja: a LPM existe mas o Go­verno faz o que en­tende.

Mais: consta do ar­tigo 10.º da PPL que as do­ta­ções da LPM estão ex­cluídas de ca­ti­va­ções or­ça­men­tais, mas sem pre­juízo da lei que aprova o Or­ça­mento do Es­tado. Quando toda a gente sabe que é a Lei do Or­ça­mento do Es­tado que de­fine as ca­ti­va­ções or­ça­men­tais.

Mais ainda: se­gundo o ar­tigo 17.º, a lei que vai ser apro­vada não se aplica aos pro­gramas em curso até à sua com­pleta exe­cução. Ou seja, é a lei que está em vigor, e que é re­vo­gada, que con­tinua a aplicar-se a todos os pro­gramas exis­tentes, in­cluindo os pro­gramas que não es­tejam nela con­tem­plados. Lê-se e não se acre­dita.

A lei de 2006 é re­vista e re­vo­gada, mas a lei que se aplica é a lei que é re­vo­gada e aplica-se aos pro­gramas que prevê e aos pro­gramas que não prevê. Es­tranha re­visão da LPM.

Já quanto à Lei de Pro­gra­mação das Infra-es­tru­turas Mi­li­tares (LPIM), há pouco a dizer. A exe­cução da lei tem sido quase inex­pres­siva e feita es­sen­ci­al­mente à custa de um nú­mero muito re­du­zido de imó­veis ven­didos ao pró­prio Es­tado ou a en­ti­dades pú­blicas.

A pro­posta de lei, porém, prevê ali­e­na­ções de valor su­pe­rior a 92 mi­lhões de euros para os pró­ximos quatro anos, e mais 80 mi­lhões para os quatro anos se­guintes. Que ali­e­na­ções serão essas, nin­guém sabe, mas se o papel aguenta tudo, o Diário da Re­pú­blica, que é ele­tró­nico, ainda aguenta mais.

 

* In­ter­venção na As­sem­bleia da Re­pú­blica, 22/​01/​15




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